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Padre Antônio Vieira, Imperador da língua portuguesa


Padre Antônio Vieira

Quais dessas façanhas bastariam para escrever uma grande história? Defender os judeus nas barbas da Inquisição, um feito e tanto para ornar a biografia. Ter coragem de propor a cessão de Pernambuco à Holanda por pragmatismo visionário. Ser um diplomata encarregado de importantes missões em influentes reinos europeus. Missionário nas terras do norte do Brasil, possuidor de vasta erudição eternizada em documentos escritos, de uma verve oratória dos Demóstenes e dos Cíceros... Bastaria uma dessas. Quando, porém, todas elas recaem em um mesmo homem, temos Antônio Vieira, esse jesuíta português que pregou em São Luís, Salvador, Lisboa e Roma, impressionou sábios e se fez compreender pela gente simples.


Nem sequer suas gafes políticas passam sem nota, sendo tão impressionantes quanto à forma com que as superava. Acrescente-se ao personagem um naufrágio e um ataque sofrido por piratas. Só mesmo tendo vivido até os noventa anos, algo também notável em uma época onde chegar aos cinquenta era feito pra bom vivedor.


Hábitos austeros, desapego a bens materiais, notívago a empregar às noites leituras e escritas à luz de velas. Desde cedo, a inteligência privilegiada delineou sua acentuada vocação para o protagonismo. Aos 18 anos, já lecionava retórica no Colégio de Olinda, tendo mesmo “mais aptidão para mestre que para discípulo” como observou João Lisboa.


Sagaz observador do cenário político de seu tempo, criticou a Revolução Pernambucana, alegando ser o cerne da causa dos insurretos as dívidas de seus líderes. E, quando estes ameaçaram procurar o socorro de “algum príncipe”, caso o rei continuasse recusar-lhes apoio, Vieira fez pouco caso: “Qual príncipe?”. Lembrou-lhes que, se o mais poderoso e coeso reino europeu, a França, não se atrevia enfrentar a Holanda, causaria admiração que Portugal, o mais exposto e fraco reino fosse tão ousado.


A arrebatadora oratória, com estilo e gênio, não sugeria as habilidades silenciosas do diplomata talentoso, cuja objetividade imprimia uma Real Politik avant la lettre. Ao ser acossado por alegações de direito internacional, ironiza com irrefutável realismo: “O que dá ou tira os reinos do mundo é o direito das armas, cujas leis ou privilégios são mais largos; e segundo este direito, costumam capitular os príncipes, quando um deles é menos poderoso”.


Ferrenho defensor dos judeus, atuou na defesa destes e, com isso, evitou o colapso da economia portuguesa, unindo ao útil o seu evidente filossemitismo. A Inquisição andou em seu encalço por isso.


Tão dono de si, deu reprimendas em Deus. Sim, nEle mesmo, o Criador. A Holanda atingia os interesses portugueses aqui e alhures, infligindo sucessivas derrotas militares a Portugal. Vieira, no Sermão do Bom Sucesso das Armas, cobra, veementemente, providências divinas. “Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas?”, indagou ao Criador um inconformado Vieira. Em tom de advertência, diz que “estes mesmos que agora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os quereis algum dia, e que os não tenhais”. E vaticina um futuro sem o culto cristão, pois no Natal “não haverá memória de Vosso nascimento”. O que seria do Criador do Universo sem os portugueses e nós...


Uma gafe antológica foi a defesa da União Ibérica, que mantinha Portugal sob o domínio espanhol. Num sermão, derramou-se em encômios ao monarca da Espanha, Felipe IV, insinuando, inclusive, ser ele o lendário D. Sebastião, rei português desaparecido no Marrocos. Alguns dias depois desse panegírico, chega a notícia de que acabara o domínio espanhol, e um português voltava a ser rei. Vieira estava em maus lençóis. Parte, então, para Lisboa. Na capital portuguesa, bastou a primeira audiência para que o novo rei fosse seduzido por sua capacidade intelectual. A partir daí, torna-se o mais influente desse reinado.


Seu temperamento e paixões políticas lhe renderam, naturalmente, muitos inimigos e, com eles, muitos panfletos desonrosos. Mas sobre isso, disse o que pensava ao pregar na Capela Real: “Todos os bens, ou sejam da natureza, ou da fortuna ou da graça, são benefícios de Deus; e a ninguém concedeu Deus esses benefícios sem a pensão de ter inimigos”. Mas, se tê-los é um gênero de desgraça, não os ter é ainda pior, pois “pode haver maior desgraça que não ter um homem bem algum digno de inveja?”.


Mesmo muito idoso, teve, ainda, ânimo para uma polêmica com o governador da Bahia que o expulsou do palácio, não, porém, sem ouvir duras palavras do velho jesuíta.


Vieira foi assim, irreverente e defensor de causas ganhas ou perdidas. Ora recluso, curtindo ostracismo, ora reabilitado, encantando a cúria num púlpito romano, mas sempre combatendo com ardorosa paixão, alicerçado numa visão de mundo inegavelmente à frente de seu tempo.


Nos seus últimos 16 anos, teve o cuidado de organizar, para a impressão, os seus sermões, de conteúdo, sem dúvida, atemporal e universal. Libelos das verdades estabelecidas, açoites das mentiras patentes. O outono de uma vida atribulada o recebe muito debilitado e cego, vivendo abrigado no Colégio da Ordem Jesuíta de Salvador para onde se refugiara não atrás de saúde, mas de “um gênero de morte mais sossegado e quieto”. E assim foi.


Ele, que desprezou a pompa, recebeu o título de Imperador da Língua Portuguesa, conferido por outro grande de outra época: Fernando Pessoa.

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